A satisfação do usuário e a autopercepção da saúde em atenção primária

Autores

  • Leonardo Cançado Monteiro Savassi Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

DOI:

https://doi.org/10.5712/rbmfc5(17)135

Resumo

O vasto campo de conhecimento da Medicina de Família e Comunidade e da Atenção Primária à Saúde (APS) envolve uma série de conceitos-chave para a obtenção da melhor qualidade da atenção. Nesse âmbito, questões relativas ao acesso a serviços de saúde, adscrição de clientela e boa relação médico-paciente são influenciados diretamente por fatores como a satisfação do usuário com o serviço de saúde e a autopercepção em saúde.

Um dos aspectos fundamentais da qualidade de um serviço refere-se à satisfação de seu usuário. A percepção do usuário interferirá na acessibilidade, na criação de vínculos e na consequente horizontalidade do cuidado, e terá reflexos na capacidade da equipe para coordenar o cuidado.

A satisfação do usuário é perseguida pelos profissionais do serviço, pesquisadores e gestores. Alguns fatores parecem comuns a todos os cenários, como viver próximo ao Centro de Saúde e ter menor remuneração. Os usuários geralmente demonstram maiores índices de satisfação em relação a médicos e menores em relação a exames; geralmente, a insatisfação se relaciona à medicação fornecida nas unidades ou na demora em serviços de propedêutica. Mesmo em relação aos profissionais de saúde, a maioria das queixas se refere a problemas de comunicação, e menos em relação a sua competência profissional1.

A avaliação da qualidade do cuidado à saúde pode dar-se em seus três componentes: estrutura, processo de cuidado e desfechos2. Quatro fatores principais podem determinar a satisfação: características dos pacientes (sociodemográficas; expectativas; estados de saúde); características dos profissionais (personalidade, qualidade técnica e perfil); aspectos da relação médico-paciente; fatores estruturais e ambientais. Todos eles podem ser agrupados em fatores relativos ao serviço e aos seus provedores, e fatores inerentes aos usuários3.

A sistematização da avaliação da satisfação do usuário é um conceito recente e complexo, que utiliza modelos teóricos ainda pouco ou razoavelmente consistentes, com predomínio de estudos de base empírica. No Brasil, os estudos ampliaram-se na década de 1990, com a consolidação do controle social nos processos de planejamento e avaliação. O país tem especificidades nesse sentido, e a satisfação vai além do aspecto humanitário e da informação recebida, e se amplia com o simples acesso aos serviços e a disponibilidade de insumos3.

As teorias em satisfação do usuário originaram-se de referenciais teóricos do marketing e da psicologia social, nem sempre reprodutíveis no campo da saúde, onde a satisfação expressa pelo usuário pode ser avaliada como de menor importância4. O próprio conceito de satisfação é controverso e nem sempre compreendido pelo paciente. Os usuários não se declaram espontaneamente “satisfeitos” ao descrever o serviço, a satisfação do paciente não depende apenas da boa qualidade do cuidado e a “insatisfação” pode se manifestar somente em desfechos negativos.

Algumas teorias de modelos sobre estudos de satisfação são mais utilizadas3:

• a teoria da discrepância: a mais utilizada nas pesquisas; os níveis de satisfação são medidos pela diferença entre expectativa e percepção da experiência;

• a teoria da atitude: a satisfação é entendida como uma atitude, uma avaliação positiva ou negativa sobre um determinado aspecto do serviço;

• a teoria da equidade: considera que os usuários avaliam os serviços por meio de ganhos e perdas individuais, comparando-se com outros usuários;

• a teoria da realização: a satisfação é dada simplesmente pela diferença entre o que é esperado e o que é obtido;

• a teoria da realização da expectativa ou da confirmação da expectativa.

Por isso, é fundamental converter conceitos em estratégias, critérios e parâmetros para a avaliação de dados que auxiliem a tomada de decisão e subsidiem o aprimoramento dos serviços.

Nesse intuito, Zils et al.5 avaliaram a satisfação do usuário do serviço de atenção primária de Porto Alegre, utilizando escalas de avaliação do tipo Likert, validadas por Kloetzel et al.4 O estudo foi conduzido comparando os desfechos de serviços com baixa e alta orientação para a atenção primária. A avaliação das unidades utilizou o PCA-Tool6, demonstrando que pacientes atendidos por serviços com alta orientação para a APS apresentam significativamente maior satisfação com o serviço, o que favorece a adesão ao cuidado.

Outro ponto fundamental para o entendimento de como o paciente se relaciona com o serviço de saúde, especialmente para proporcionar uma atenção qualificada voltada para as reais necessidades, é a autopercepção da saúde. Trata-se de um conceito fundamental e, ao mesmo tempo, um bom preditor da mortalidade individual.

A atenção primária é o âmbito privilegiado para uma abordagem centrada no sujeito, cultivo de uma boa relação médico-paciente e intervenções educativas em saúde voltadas para doenças crônicas, em que o comportamento desempenha papel fundamental. Nesse sentido, o conceito da autopercepção de saúde traduz não apenas o risco de morte, mas a possibilidade de entender a perspectiva do paciente acerca de sua saúde.

Por estar ligada a fatores socioeconômicos, ambientais, biológicos, emocionais, culturais e de assistência, é fundamental entender quais destes influenciam essa percepção e de que maneira. Agostinho et al. (2009)7 estudaram os fatores que influenciam a autopercepção em saúde no âmbito da atenção primária e encontraram evidências da relação com fatores biológicos, socioeconômicos e de vínculo, demonstrando que uma maior satisfação com a Unidade Básica de Saúde se associou a uma melhor autopercepção de saúde.

Contribuíram para uma pior autopercepção de saúde: maior escolaridade, maior idade, gênero feminino, tabagismo, presença de doença crônica, utilização do Serviço, internações pregressas e menor satisfação com o serviço de saúde. As particularidades da atenção primária, em que o paciente se encontra em seu território e apresenta sinais, sintomas e doenças em fases mais iniciais e menos complicadas podem ter influência na correlação entre os fatores e a autopercepção, o que abre a possibilidade para o aprofundamento de estudos nessa área.

Essa conformação de Unidades Básicas de Saúde por território representa a possibilidade de uma atuação mais próxima do sujeito, proporcionando o uso adequado das ferramentas da saúde da família em defesa do cuidado individualizado. O cadastro populacional é um instrumento que revela a estrutura da população adscrita, as características do meio ambiente e a vulnerabilidade dos indivíduos.

O conhecimento do território permite a ação de todos os sujeitos envolvidos, utilizandose das características epidemiológicas, políticas e sociais para diagnosticar os problemas de saúde locais. Entretanto, como em várias outras searas do processo de trabalho na atenção primária brasileira, há um distanciamento entre a realidade proposta – a de um delineamento que permite a responsabilidade sanitária por uma população adscrita – e a realidade das equipes de saúde da família – desconhecimento das oportunidades de atuar nos determinantes sociais do processo de adoecimento.

Alvarenga e Martins8 avaliaram qualitativamente médicos da estratégia saúde da família e apontaram que esses profissionais encaram o território como uma área de abrangência geograficamente delimitada, sem o real conhecimento do território e, com isso, sem a capacidade de vislumbrar ações de caráter coletivo e modificar os fatores responsáveis pelo adoecimento e vulnerabilidade.

Assim, vários são os desafios no cuidado ao paciente em atenção primária. Alguns deles estão expostos nos números 16 e 17 da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, por meio de estudos desenvolvidos no âmbito da atenção primária, os quais auxiliam na compreensão das relações do usuário com o serviço, do usuário com o seu processo de adoecimento, e dos profissionais com os usuários. Cabe aos pesquisadores da atenção primária proporcionar respostas para esses desafios por meio da pesquisa reflexiva e voltada para os conhecimentos da prática em Medicina de Família e Comunidade, trazendo soluções para os serviços de saúde da família.

Downloads

Métricas

Visualizações em PDF
6,674
Jul 2010Jan 2011Jul 2011Jan 2012Jul 2012Jan 2013Jul 2013Jan 2014Jul 2014Jan 2015Jul 2015Jan 2016Jul 2016Jan 2017Jul 2017Jan 2018Jul 2018Jan 2019Jul 2019Jan 2020Jul 2020Jan 2021Jul 2021Jan 2022Jul 2022Jan 2023Jul 2023Jan 2024Jul 2024Jan 2025Jul 2025Jan 2026208
|

Biografia do Autor

Leonardo Cançado Monteiro Savassi, Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

Coordenador do Programa de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade da Secretaria Municipal d Saúde de Betim/MG; Médico da Colônia Santa Isabel da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais; Médico Pediatra da Unimed Betim/MG; Editor da Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (MFC); ============================================/====================================== Título de Especialista em Medicina de Família e Comunidade pelo MEC/ SBMFC; Título de Especialista em Pediatria pelo MEC/ Hospital Belo Horizonte; Especialização em Saúde da Família pelo MEC/UFMG/ESPMG; Mestre em Ciências da Saúde (Medicina II), área de concentração Saúde Coletiva, sub-área: Educação em Saúde do CPqRR/FIOCRUZ-MInas. Doutorando da mesma área e instituição ==============================================/====================================== Ex-presidente (2005-2007) da Associação Mineira de MFC. Diretor de Publicações (2008-2010) da Sociedade Brasileira de MFC. Presidente da Associação Médica de Betim 2009-2011. ==============================================/====================================== Membro do GRUPO DE PESQUISA EM HANSENÍASE da FHEMIG.

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3650989593840814

Downloads

Publicado

2010-03-25

Como Citar

1.
Savassi LCM. A satisfação do usuário e a autopercepção da saúde em atenção primária. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 25º de março de 2010 [citado 8º de junho de 2025];5(17):3-5. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/135

Edição

Seção

Editorial

Plaudit