Saúde da Família: uma estratégia necessária

Autores

  • Ricardo Donato Rodrigues Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ
  • Maria Inez Padula Anderson Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ

DOI:

https://doi.org/10.5712/rbmfc6(18)247

Resumo

A histórica Conferência de Alma Ata, que em 1978 reuniu delegações de 134 países sob a liderança da Organização Mundial da Saúde (OMS), consagrou a Atenção Primária à Saúde (APS) como estratégia para que os países alcançassem a meta “Saúde Para Todos no ano 2000”.

O diagnóstico submetido à apreciação dos congressistas em Alma Ata pelo Dr. Halfdan Mahler, então diretor executivo da OMS, revelava que os sistemas nacionais de saúde, centrados no modelo flexneriano de medicina, longe de proporcionar saúde para todos, estavam mergulhados em problemas de tal ordem que, não raro, se transformavam em franca situação de crise. Neste cenário, a Inglaterra representava a grande exceção ao estado de desordem que a humanidade experimentava no mundo da saúde.

As nações economicamente mais desenvolvidas puseram rapidamente em marcha um processo de reorientação dos respectivos sistemas nacionais de saúde que avançou a passos largos, sobretudo na Europa. A principal estratégia que adotaram para seguir a orientação da OMS e fortalecer a APS, praticamente sem exceção, foi investir na formação de especialistas em Medicina de Família e Comunidade.

Estudos realizados em vários países da Europa, bem como no Canadá, Estados Unidos e, por último, também no Brasil, evidenciam que os sistemas de saúde orientados para os cuidados de saúde primários atendem com mais eficiência as necessidades de saúde das pessoas e dos povos.

Resultados obtidos nestes estudos revelam que países com APS forte têm custos globais menores e populações em geral mais satisfeitas e mais saudáveis. Também revelam que uma disponibilidade maior de médicos de família reduz os efeitos adversos das desigualdades sociais e que em áreas com maior disponibilidade de médicos de família (mas não de maior disponibilidade de outros especialistas) têm popu­lações mais saudáveis.

Nos Estados Unidos, país cujo sistema de saúde mantém uma forte raiz hospitalocêntrica, o acréscimo de 1 médico de família está associado a 1,44 menos mortes por 10.000 habitantes. Outros indicadores em países com Atenção Primária organizada na lógica da Medicina de Família e Comu­nidade ou da Estratégia Saúde da Família revelam:

• menos crianças com baixo peso ao nascer;
• melhores taxas de mortalidade infantil, especialmente pós-neonatal;
• melhores taxas de mortalidade precoce relacionada a todas as causas “exceto as externas”;
• maior expectativa de vida em todas as faixas de idade, exceto aos 80 anos;
• melhores taxas de mortalidade geral;
• melhores taxas de mortalidade por doença cardíaca;
• melhor detecção precoce de cânceres como o cólon-retal, mama, uterino/cervical e melanoma;
• redução das taxas de internação solicitadas em função de “condições sensíveis à APS” com conseqüente diminuição da sobrecarga em unidades de emergência e redução da demanda hospitalar.

A Medicina de Família e Comunidade pode contribuir, de fato, para o aprimoramento dos sistemas de saúde porque as necessidades de cuidados primários que as pessoas experimentam ao longo de suas vidas exigem mais do que o emprego de procedimentos focais, transitórios ou pontuais, voltados para o controle de instabilidades fisiopatológicas críticas. São necessidades de promoção da saúde, prevenção tanto das doenças evitáveis quanto da instalação precoce das enfermidades crônicas e das suas complicações que levam à invalidez ou morte prematuras.

Embora mais recente o processo de reorientação do modelo assistencial no Brasil cujo marco foi a implantação em 1994 do Programa Saúde da Família (PSF), predecessor da Estratégia Saúde da Família (ESF), tem merecido reconhecimento internacional pelos resultados obtidos no curto prazo.

Apesar das conquistas e avanços consequentes à im­plantação do SUS, o modelo convencional de APS até en­tão vigente, constituía um dos maiores obstáculos à própria consecução dos princípios consignados na Constituição de 1988 para regê-lo. A começar pela Universalidade, cujo ca­ráter excludente levou milhões de brasileiros a recorrerem a empresas de planos e seguros de saúde. Tão ou mais impor­tante do que isto, foi o desrespeito ao Princípio da Integra­lidade no que tange à integralidade do cuidado médico no âmbito da APS, prolongando sua fragmentação praticada por especialistas dos demais níveis do sistema. As dramá­ticas consequências de tudo isto são de domínio público.

Ao instituir a Estratégia Saúde da Família (ESF), o Brasil inovou e avançou na configuração de um modelo de Atenção Primária altamente custo-efetivo, baseado numa equipe bá­sica, constituída por medico, enfermeiro, cirurgião-dentista, técnicos de enfermagem e odontologia, agentes comunitá­rios de saúde e, ainda, uma equipe interdisciplinar – NASF, para apoio e interface imediata, ampliando e amplificando a capacidade resolutiva.

Com esta configuração pode alcançar elevado potencial de resolutividade, porque se dedica, não a atender demandas pontuais de saúde, mas sim a abordar processos de saúde e adoecimento, problemas de saúde mais frequentes de pes­soas, famílias e comunidades. Além disso, a equipe desen­volve ações de educação, promoção à saúde e prevenção de adoecimento. Logo, é muito mais do que prover aumento de cobertura assistencial.

A ESF, então, na medida em que é implantada, tem mo­dificado a crônica situação de caos experimentada no cam­po da saúde pelo povo brasileiro, ainda que nem sempre as Equipes disponham de condições técnicas e operacionais minimamente adequadas. A exemplo do que acontece no cenário internacional, as avaliações técnicas revelam tanto os benefícios já alcançados quanto os benefícios potencias da Estratégia. Vale ressaltar quanto a isto:

• o incremento de 10% na cobertura da Saúde da Família está associado a uma redução da ordem de 4,56 % nas taxas de mortalidade infantil;
• a exposição à Saúde da Família por 8 anos está associada com redução de 5,4% na mortalidade de menores de 1 ano em comparação com municípios sem Saúde da Família, aumento de matrícula de adolescentes (até 17 anos) na rede escolar da ordem de 4,5% e de redução da probabilidade de partos em mulheres com 18 até 55 anos a intervalos menores que 21 meses, da ordem de 4,6%;
• redução das taxas de internação por Condições Sensíveis à APS, a exemplo da redução de internações por asma entre adolescentes e da taxa de internações por insuficiência cardíaca, bem como por acidente cérebrovascular, na população acima dos 40 anos de idade e tantos outros dados favoráveis a ESF.

Os resultados da expansão da ESF no município do Rio nestes 2 últimos anos (incremento de aproximadamente 15%) já seriam suficientes para dirimir qualquer tipo de dúvida quanto a importância da ESF na reorientação do modelo assistencial, ainda que a cobertura ao conjunto da população não tenha atingido a casa dos 20%. Houve queda nas internações hospitalares (foram quase 17 mil interna­ções a menos entre janeiro e outubro de 2010), inclu­sive por doenças cardiovasculares, e visível redução, ainda a quantificar, da demanda de atendimento de urgência, gra­ves pontos de estrangulamento do modelo assistencial ainda hegemônico.

Em suma a ESF revela fortalezas que devem ser respei­tadas e reforçadas pelos gestores dos 3 níveis de governo, cabendo dar ênfase particular às seguintes:

• ter modificado, substancialmente e para melhor, em curto espaço de tempo, importantes resultados e indicadores de saúde do Brasil;
• ter expandido e ampliado a cobertura assistencial de cuidados primários em saúde para mais de 100.000 milhões de brasileiros;
• ter constituído uma rede articulada e progressivamente qualificada de APS, levando, como nunca antes, ações diversificadas de saúde, no âmbito da educação, promoção, prevenção e reabilitação em saúde com base em novo modelo assistencial;
• estar centrada em uma racionalidade científica distinta daquela geradora da crise da saúde no Brasil e no mundo;
• não atuar na doença como disfunção de fragmento do corpo, mas junto às pessoas, famílias e comunidades e seus processos de saúde e adoecimento;
• ser baseada no trabalho de uma equipe básica – altamente custo-efetiva – que, atuando na perspectiva da integralidade e apoiada por uma rede de apoio matricial, tem elevada capacidade resolutiva, evitando as digressões e a perversidade dos percursos intermináveis e iatrogênicos dos pacientes pelo sistema de saúde;
• utilizar, simultânea e interativamente, a Abordagem Individual, a Abordagem Familiar e a Comunitária como estratégias para educar, promover e recuperar a saúde, evitando adoecimentos ou agravamentos desnecessários;
• não é para pobres ou para ricos mas inclusiva, um modelo para todos conservando o ideal firmado em Alma Ata;
• aonde é implantada com qualidade, aumenta indistintamente a satisfação dos usuários, a qualidade da assistência, alcança melhores resultados em saúde, e reduz custos pois é mais eficaz e efetiva, a um menor custo;
• promove um reequilíbrio saudável na proporção e distribuição de especialistas focais, de um lado, diminuindo o acesso de pessoas sem necessidade e, por outro ampliando o acesso de outros com necessidade e que não têm acesso, seja por desorganização do sistema, seja pela não identificação precoce dos casos;
• estar contribuindo para o reconhecimento de uma especialidade médica que se dedica à Atenção Primária à Saúde – a Medicina de Família e Comunidade – que durante décadas, foi depreciada e menosprezada no contexto da saúde no Brasil;
• ser estratégica para executar políticas de inserção organizada da APS nos cursos de graduação em medicina e outras áreas da saúde;
• estar ampliado, de forma inigualável a formação e os cenários de capacitação pós-graduada no campo da APS no Brasil.

Apesar de tantos pontos fortes e do reconhecimento in­ternacional, também é preciso reconhecer que este proces­so de mudança do modelo assistencial em curso no Brasil constitui um desafio nada trivial. Importa reconhecer que implantar 30 mil Equipes de Saúde da Família em 15 anos constitui uma ousadia nunca antes posta em prática na his­tória da saúde mundial.

Não é de estranhar, portanto, a ocorrência de problemas conjunturais quando se leva em conta as dimensões e di­versidades que bem caracterizam este país de todos, com quase 200 milhões de habitantes com diretos de cidadania amplamente garantidos por sua Constituição.

Dawson já reconhecia nos idos de 1920 que a organiza­ção de um sistema de cuidados de saúde implica na consti­tuição de uma rede articulada de serviços com sólida base ambulatorial com orientação comunitária. Isto significa que as unidades básicas de saúde devem estar conectadas a cen­tros de referência bem estruturados. Mas também é neces­sário que a infraestrutura dessas unidades básicas respeite as exigências técnicas e éticas coerentes com suas atribuições, competências e responsabilidades. Como se sabe, nem sem­pre é assim.

A formação de uma Equipe de Saúde da Família tam­bém não é uma questão trivial em face da complexidade dos problemas e demais necessidades de saúde inerentes a Atenção Primária. Basta lembrar a carência de profis­sionais de saúde com formação específica para atuar neste nível do sistema, inclusive no tocante a formação de es­pecialistas em Medicina de Família e Comunidade, ainda que 3 programas pioneiros tenham sido instituídos em 1976, portanto, 2 anos antes da Conferência de Alma Ata.

Só em anos mais recentes foram instituídas programas e políticas de incentivo, formação, capacitação e educação permanente e a distância para os profissionais de saúde no âmbito da APS/ESF, particularmente no que se refere ao Prósaúde, Telessaúde e Unasus.

Por estas razões têm sido desenvolvidas recomendações e estratégias políticas visando ao aperfeiçoamento e também à radicalização em prol da Estratégia Saúde da Família. Entre elas vale ressaltar algumas delas adaptadas a partir de proposta apresentada por Eugênio Vilaça Mendes durante a V Conferência Internacional de APS, patrocinada pelo MS e realizada no Rio em 2010:

• superação de enfoques restritos de APS seletiva, APS como projeto estruturante do SUS e Incremento dos recursos financeiros;
• consolidação em regiões e populações já cobertas pela ESF, expansão para regiões integradas economicamente (grandes e médias cidades) e para populações economicamente integradas (setores de classe média);
• adensamento tecnológico, melhoria da planta física, incremento dos recursos de apoio ao diagnóstico e tratamento, expansão e consolidação do Telessaúde;
• preservação e fortalecimento das políticas de incentivo ao ensino da APS/ESF nos cursos de graduação em saúde, e acesso dos respectivos especialistas ao corpo docente das IES;
• incremento dos programas de Residência em Medicina de Família e de Enfermagem e Odontologia da Família e da Comunidade;
• qualificação dos cursos de especialização em Saúde da Família;
• institucionalização dos programas de Educação Permanente, com base nos princípios da andragogia, em tempo protegido, e incremento dos programas de Educação a Distância;
• superação de distorções e problemas nas relações de trabalho (reforço do regime estatutário, implantação de planos de carreira, abono permanência em regiões críticas, valorização de titulação no âmbito da ESF, adesão à Estratégia e desempenho alcançado);
• aperfeiçoamento da gestão nos 3 níveis de governo e no nível local. E com esta última consideração vale sugerir que os novos gestores mantenham prudência e evitem rupturas na trajetória de um projeto de Estado, que tem resistido a mudanças de governos e gestões.

A Estratégia Saúde da Família é uma conquista do cida­dão e do povo brasileiro. Ela não é qualquer forma de fazer Atenção Primária, ao contrário, ela é uma forma eficaz, efi­ciente e efetiva de fazer uma APS de qualidade. Precisamos consolidar esta estratégia, aperfeiçoando e qualificando cada vez mais as Equipes e os Núcleos de Apoio à Saúde da Fa­mília (NASF). Este é o caminho.

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Biografia do Autor

Ricardo Donato Rodrigues, Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ

Possui graduação em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1969), Mestrado 1979) e Doutorado em Saúde Coletiva (1999) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ex- presidente da Associação de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro; atual Diretor de Formação e Capacitação da mesma entidade. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária da Faculdade de Ciências Médicas. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Medicina de Família e Comunidade, atuando principalmente nos seguintes temas: medicina de família e comunidade, medicina ambulatorial, atenção primária, medicna integral, integralidaadde biopsicossocial, ensino e formação médica, gestão em saúde.

Mais informações: Currículo Lattes - CNPq

Maria Inez Padula Anderson, Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ

Graduada em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, é especialista em Medicina de Família e Comunidade. Possui título de Mestrado (1997) e Doutorado (2002) em Saúde Coletiva pelo Insitituto de Medicina Social / UERJ. É médica e professora adjunta do Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária da Faculdade de Ciências Médicas / UERJ do qual, atualmente, está à frente da chefia. Foi Presidente (2004/008) da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Atua nos seguintes temas: Abordagem Centrada na Pessoa, Conceitos e Práticas em Medicina Biopsicosocial, Medicina Ambulatorial, Ensino e Formação Médica, Abordagem Familiar e Comunitária, Educação em Saúde, Atenção Primária à Saúde. Integra a equipe do Pólo de TeleSaúde em Apoio à Atenção Primária à Saúde do Estado do Rio de Janeiro e do Pró-Saúde da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. Representa a Faculdade de Ciências Médicas na institucionalização do Projeto UNASUS, na UERJ.

Mais informações: Currículo Lattes - CNPq

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Publicado

2011-05-23

Como Citar

1.
Rodrigues RD, Anderson MIP. Saúde da Família: uma estratégia necessária. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 23º de maio de 2011 [citado 24º de dezembro de 2024];6(18):21-4. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/247

Edição

Seção

DEBATE

Plaudit