Qualidade em saúde
DOI:
https://doi.org/10.5712/rbmfc7(23)655Resumo
A Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (RBMFC) vem melhorando consideravelmente ao longo dos últimos anos e o Editorial da edição 21 faz um resumo dos avanços alcançados até o presente momento. Ao assumir a responsabilidade pela edição da RBMFC escolhi o tema da qualidade em saúde para abrir essa nova fase da revista e também estimular o leitor a refletir sobre o significado do termo ‘qualidade’ e seus matizes na Medicina. Outra razão para a escolha da temática é que esta permeia o conteúdo da presente edição. Como novo editor da revista pretendo manter o alto padrão alcançado por meus antecessores, o que considero uma tarefa desafiadora. Desde já, gostaria de afirmar que me sinto honrado por estar à frente da RBMFC e que me esforçarei para continuar aprimorando ainda mais este importante espaço de reflexão dos médicos de família e comunidade e demais profissionais de saúde.
A ideia de medir a qualidade dos serviços em saúde começou a ser desenvolvida na década de 1960, por Avedis Donabedian, na Universidade de Michigan (EUA). Donabedian lançou uma metodologia avaliativa e classificatória no que se refere à estrutura, ao processo e aos resultados nos serviços de saúde.1 Ele afirmava que ‘o critério de qualidade nada mais é do que juízo de valor’ e que a definição de qualidade em saúde ‘reflete os valores e objetivos correntes de um determinado sistema de saúde e de toda a sociedade do qual ele faz parte’.2 Neste sentido, a cultura e os valores das sociedades mudaram drasticamente ao longo das últimas décadas, particularmente na Medicina, com o surgimento da Medicina Baseada em Evidências (MBE). Desse modo, tornou-se possível melhor estabelecer padrões de serviços e procedimentos em saúde e, consequentemente, definir serviços de alta qualidade em saúde, bem como medir alguns de seus aspectos.3
Se a liberdade dos médicos já era tida com um mito, visto que estes sempre praticaram seu ethos de acordo com preceitos pré-estabelecidos, no sentido de que tais procedimentos eram apropriados a certas situações mesmo que não houvesse ‘provas científicas’ de que fossem efetivos4, hoje, com a MBE, a autonomia dos médicos tornou-se cada vez mais restrita, a ponto de estarmos correndo o risco de fortalecermos um modelo científico-burocrático do exercício da Medicina.5 Neste sentido, Donabedian já havia definido a prática dos médicos como uma ‘validade normativa’, ou seja, fundamentada por um consenso profissional. Ele afirmava que, mesmo quando duas escolas rivais de pensamento diferem em suas práticas, mas cada uma delas ‘se conforma fielmente às recomendações de uma ou de outra escola, pode-se considerar que ambas possuam um mesmo nível de qualidade’.4 Portanto, a qualidade em qualquer sistema de saúde pode apenas refletir uma ideologia hegemônica que define os critérios para sua formatação.
Neste ano de 2012, vimos o tema da qualidade na APS surgir fortemente com a iniciativa do Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica(PMAQ-AB). Esta iniciativa busca melhorar a qualidade dos serviços em saúde através de incentivos financeiros às equipes de saúde da família que pactuarem metas de qualidade. Por exemplo, naPMAQ-AB, ‘o incentivo de qualidade é variável e dependente dos resultados alcançados pelas equipes e pela gestão municipal. Este incentivo será transferido a cada mês, tendo como base o número de equipes cadastradas no programa e os critérios definidos em portaria específica do PMAQ.6Na base daPMAQ-AB, está a ‘contratualização de compromissos e indicadores a serem firmados entre as Equipes de Atenção Básica com os gestores municipais e destes com o Ministério da Saúde’.6
Ao refletirmos sobre a citação acima, dependendo da linha ideológica, este ‘gerencialismo’ da qualidade carrega em si um potencial de desvio dos objetivos de desempenho de primeira ordem dos serviços de saúde, deslocando recursos para os sistemas de gerenciamento que definem e monitoram o desempenho. Assim, a qualidade neste esquema nada mais é do que ‘certo estilo de processo gerencial que seleciona fragmentos de uma realidade complexa para produzir uniformidade, previsibilidade e verificabilidade’.7 Desse modo, revestida de uma certa cientificidade, a cultura do gerenciamento, da auditoria e da qualidade tem sido introduzida no setor da saúde como sendo neutra, racional e objetiva. O próprio Cecil Helman nos alertou sobre os perigos e a retórica desse ‘gerencialismo’, que pode colocar em risco o alto grau de autonomia dos médicos de família e comunidade.8
Por fim, cabe a nós médicos de família e comunidade estarmos atentos a essa tendência global, para criticamente avaliarmos as implicações de tais diretrizes no cotidiano dos nossos serviços de saúde.
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Referências
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