Ética médica e rastreamento: em quais evidências deveríamos nos apoiar?
DOI:
https://doi.org/10.5712/rbmfc9(31)929Resumo
Se o rastreamento fosse uma droga, ela já teria sido retirada do mercado. Assim, qual será o primeiro país a parar com as mamografias para rastreamento de câncer de mama?
(Peter C. Gøtzsche) 1
Nesta edição a RBMFC discute o tema da ética médica, espinha dorsal que orienta tanto as demandas por serviços ou tecnologias em saúde, como a prática dos médicos de família e comunidade. Como estímulo à essa reflexão, a seção Debate discute a “mamografia-obrigatória preventiva” no Uruguai, enquanto que na seção Ensaios, Jamoulle e Gomez discorrem sobre o conceito de prevenção quaternária, ação que tem como objetivo oferecer alternativas eticamente aceitáveis aos usuários, de modo a prevenir o excesso de intervenções médicas.2 Portanto, apesar das consideráveis transformações tecnológicas e sociais que afetam diretamente a saúde das pessoas, a ética em medicina continua a formatar moralmente as decisões e problemas em saúde, com implicações para pacientes, médicos e instituições de saúde.
Como guia analítico prático e de fácil compreensão para os profissionais da saúde, Gillon3 discute os quatro princípios e o escopo da ética médica: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Esta última se divide em justiça distributiva, justiça com base no direito e justiça legal. Esses quatro princípios fornecem um patamar de diálogo para diferentes culturas, crenças religiosas e posicionamentos políticos, visto que estes princípios são considerados prima facie: constituem dever que se impõe em todas as ocasiões em que se atua sobre a saúde das pessoas, a menos que haja um conflito entre deveres iguais ou mais fortes que estes.4 Assim, com base nesses quatro princípios que fundamentam a ética em medicina e, consequentemente, a aplicação da prevenção quaternária, pretende-se analisar criticamente o rastreamento do câncer de mama, enquanto medida preventiva.
Os programas organizados de rastreamento têm por princípio a utilização de um instrumento inicial de seleção ou peneiramento (i.e. mamografia) para separar pessoas assintomáticas na população-alvo, que necessitarão ser classificadas ou diagnosticadas por meio de um ‘gold-standard’ que define a doença (i.e. anatomopatológico) para, então, ser oferecido à pessoa o tratamento preventivo definitivo para a condição rastreada.5 Como esse tipo de intervenção recai sobre indivíduos saudáveis, os requerimentos éticos nos casos dos programas de rastreamento são altíssimos, pois os riscos de danos não estão contrabalançados com um sofrimento real (doença já instalada), mas sim, estão ancorados em um potencial futuro de adoecimento e morte. Neste caso, o princípio da não-maleficência (não causar danos) impera sobre o da beneficência (desejo de promover o bem-estar dos pacientes), visto que pessoas assintomáticas, que se percebem como saudáveis, podem ter sua saúde abalada indefinidamente devido a intervenção da biomedicina. Os exemplos de danos mais citados na literatura são sofrimentos psicológicos (devido as incertezas dos falsos positivos, falsa segurança dos falsos negativos e das situações limítrofes, que requerem monitoramento de perto, como as Neoplasias Intra-epiteliais Cervicais – NIC I, II, III), bem como as sequelas físicas resultantes dos tratamentos, tais como impotência ou incontinência urinária, no caso do rastreamento e tratamento do câncer de próstata.
Como no rastreamento e/ou check up a intervenção é orientada com base em uma ‘miragem’ ou probabilidade, este pode resultar em ‘danos sem potenciais benefícios’,6 em que os procedimentos invasivos (para esclarecer ‘imagens’ ou resultados de exames ‘positivamente’ suspeitos na fase de seleção ou peneiramento) resultam em complicações, porém a biópsia resulta normal. Por exemplo, as colonoscopias, laparoscopias, biópsias (de fígado, rim, próstata), podem produzir complicações (perfuração de alça intestinal, complicação na anestesia, perfuração de artéria importante, sepses) podendo escalonar para readmissão hospitalar, com estresse para pacientes e familiares e/ou em um pior cenário, morte do paciente com um laudo de anatomopatológico benigno. Portanto, os programas de rastreamento, por converterem pessoas saudáveis em enfermos em uma escala populacional, são altamente iatrogênicos, podendo ser resumidos na seguinte frase: “muito serão chamados, poucos os escolhidos...”, mas muitos serão prejudicados para que pouquíssimos sejam ‘curados’.
Isso é particularmente verdadeiro no caso do rastreamento do câncer de mama, que produz canceres fisiopatologicamente insignificantes (sobrediagnóstico) expondo mulheres previamente saudáveis a danos significativos devido ao tratamento com radioterapia. Gøtzsche et al.7 alertam para os riscos de efeitos adversos importantes da irradiação, tais como insuficiência cardíaca (27%) por dano da circulação cardíaca e/ou indução de câncer de pulmão (78%). Além do mais, uma revisão sistemática recentemente publicada no British Medical Journal8 sobre os efeitos adversos dos rastreamentos de cânceres em geral, verificou que somente um terço dos ensaios clínicos controlados aleatorizados se preocupou em medir os danos da intervenção do rastreamento. Esse artigo é importante porque afeta diretamente a prática dos profissionais para estabelecer os parâmetros de segurança da intervenção junto a seus pacientes, visto que existe um viés de seleção de informação que ressalta apenas os aspectos positivos do rastreamento, deixando de controlar e/ou monitorar potenciais danos.
Do ponto de vista ético, esse contexto de incerteza fere a autonomia das pacientes, criando muita vezes um falso empoderamento, uma vez que as mulheres não detém uma visão mais completa sobre os potenciais riscos e benefícios dos programas de rastreamento do câncer de mama.9 Para realmente empoderar a mulher, de modo a fortalecer sua autonomia para decidir sobre as intervenções que afetam sua saúde, há a necessidade de que a informação seja mais transparente e que revele também os potenciais danos da intervenção. Além disso, a linguagem usada na divulgação da informação deve ser neutra, de simples entendimento, culturalmente acessível, de modo que as usuárias do sistema de saúde possam decidir melhor sobre sua saúde.3
Do ponto de vista da saúde pública, da ética da justiça distributiva, e dos limitados recursos em saúde que qualquer sistema de saúde enfrenta, os programas de rastreamento desviam recursos financeiros - que deveriam ser prioritariamente investidos no tratamento e cuidado das pessoas doentes - para as pessoas saudáveis, com o agravo de produzir novos doentes reais, fruto do dano da intervenção sobre corpos saudáveis, gerando mais custos para o sistema de saúde e para a sociedade em geral.
Felizmente, os programas de rastreamento estão cada vez mais perdendo sua força, principalmente na Europa, a exemplo do Swiss Medical Board10 que não encontrou razão para a manutenção dos programas de rastreamento do câncer de mama, em face das novas evidências científicas. Na Dinamarca a taxa de mortalidade atribuída ao câncer de mama não foi reduzida devido a implementação do rastreamento sistemático do câncer de mama com mamografias, ao longo de 17 anos de seguimento,11 entretanto, se produziu uma taxa de sobrediagnóstico de 33%.12 Resultados semelhantes também foram encontrados nos Estados Unidos após 30 anos de observação13, e no Canadá, o acumulado de 25 anos de acompanhamento dos efeitos do rastreamento do câncer de mama, além de não representar redução da mortalidade por câncer de mama, resultou em 22% de sobrediagnósticos.14 Assim, para Peter C. Gøtzsche,1 umas das maiores autoridades mundiais sobre o tema, o melhor método que dispomos para reduzir a ocorrência do câncer de mama é parar com o seu rastreamento por meio de mamografias.
Desse modo, tanto do ponto de vista ético como científico,10 os programas de rastreamento deveriam ser descontinuados ou se restringirem a grupos ou situações muito específicas, e o foco da prevenção ser redirecionado para a intervenção no sintomático-precoce, visto que o tratamento do câncer de mama melhorou consideravelmente nas últimas décadas, sendo este o provável responsável pela melhoria da qualidade de vida das mulheres afetadas.1 A Força Tarefa Canadense15 de cuidados preventivos em saúde, em sua mais recente atualização (em 2011) avaliou como fraca a recomendação para o rastreamento do câncer de mama com mamografia a cada 2 a 3 anos na faixa etária de 50 a 69 anos, pois as evidências para o rastreio foram consideradas apenas de moderada qualidade. Assim, o Ministério da Saúde16 brasileiro agiu de forma bem fundamentada ao restringir os incentivos financeiros ao rastreamento do câncer de mama à faixa etária de 50 a 69 anos.
Portanto, ‘não há nada de errado em dizer não à mamografia’,9 pois, ao se atuar sobre pessoas assintomáticas e saudáveis, o princípio da não-maleficência deve sobrepor-se ao da beneficência. O desafio posto aos médicos de família e comunidade é o de individualizar cada caso neste mar de incertezas, compartilhando com seus pacientes os potenciais danos, frequentemente omitidos, atribuídos ao rastreamento de cânceres, de modo a operacionalizar na prática a prevenção quaternária.
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Referências
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