Manifesto de Curitiba: pela Prevenção Quaternária e por uma Medicina sem conflitos de interesse
DOI:
https://doi.org/10.5712/rbmfc9(33)1006Resumen
Nós, médicos de família e comunidade reunidos no I Seminário Brasileiro de Prevenção Quaternária, trazemos o seguinte manifesto em prol de uma Medicina isenta de conflitos de interesses e imbuída de profissionalismo no seu sentido mais pleno. Estamos baseados nos seguintes pressupostos:
Código de Ética Médica1
II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional;
IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão;
V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente;
IX - A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio;
XIV - O médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos e em assumir sua responsabilidade
em relação à saúde pública, à educação sanitária e à legislação referente à saúde;
XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade;
...
É vedado ao médico:
Art. 68. Exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia, indústria farmacêutica, ótica ou qualquer organização destinada à fabricação, manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição médica, qualquer que seja sua natureza.
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É vedado ao médico:
Art. 104. Deixar de manter independência profissional e científica em relação a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou obtendo vantagens pessoais.
Conceito de profissão enquanto compromisso com valores profissionais
Uma profissão é:
1. livre da influência do comércio e do Estado e
2. responsável pela sua própria educação e estrutura de conhecimento2
E conceito de Prevenção Quaternária3
“Ação feita para identificar pacientes em risco de sobremedicalização, para os proteger de mais intervenções em saúde e para lhes sugerir intervenções eticamente aceitáveis” (Adaptado de Jamoulle e Roland, 1995)
Portanto, nós, médicos defensores da prevenção quaternária em qualquer nível de atenção à saúde, defendemos os princípios bioéticos em prol do melhor e do mais aceitável para a população:
− Não-maleficência: partindo do pressuposto hipocrático de “em primeiro lugar não causar dano” (primum non nocere), sempre levaremos em conta o fato de que, quanto maior o risco de causar dano, mais embasado cientificamente e isento de interesses diversos do científico deve ser o procedimento em questão para que este possa ser considerado um ato eticamente aceitável, mesmo que para tal se faça necessário questionar aspectos metodológicos e conflitos de interesses em protocolos e diretrizes (muitas destas tidas como conhecimento inquestionável, porém gerado sob uma perspectiva comercial), sempre pautados na melhor evidência cientifica isenta disponível, e evitando ao máximo a “Disease Mongering” (promoção da doença), a transformação de fatores de risco e eventos fisiológicos em doenças, a medicalização desses eventos ou o excesso diagnóstico, que podem por a pessoa em risco de estigmas e danos posteriores.
− Beneficência: pensando no melhor para o paciente (do grego pathe – sentimento –, com seus desdobramentos no latim patientem – aquele que sofre –, e pax – paz, paciência), estaremos em busca sempre das melhores e mais adequadas evidências científicas livres de conflitos de interesses para promover a saúde das doenças, com o mínimo de intervenções possíveis. Significa que buscaremos desenvolver ações proativas “para o bem do paciente”, livres de influências externas, lembrando que condutas expectantes ou mesmo a desprescrição também são ações proativas para o benefício das pessoas. E o efeito benéfico envolve também proteger as pessoas de informações inadequadas e reduzir a angústia causada pela Disease Mongering, além de fornecer informações adequadas a essas pessoas para que elas mesmas pesem riscos e benefícios e tomem suas decisões por meio da persuasão puramente profissional-relacional, visando ao melhor resultado possível para aquela pessoa.
− Autonomia: a autonomia ou autodeterminação envolve dois aspectos durante o estabelecimento da relação médicopaciente:
1. capacidade para atuar deliberadamente, o que envolve razão e discernimento para decidir entre as alternativas que lhe são apresentadas e
2. liberdade, no sentido de estar livre de qualquer influência controladora para a emissão de um posicionamento.4
Portanto, é nossa premissa empoderar a população com as informações mais confiáveis possíveis para a tomada de decisão conjunta diagnóstica ou terapêutica, sem manipulação nem coerção, mas com a avaliação correta de riscos e benefícios, em especial naqueles procedimentos onde ainda há fraco embasamento cientifico e onde há fortes influências de indústrias farmacêuticas ou de produtos médicos-hospitalares, e mesmo de corporações com interesses mercantilistas, indo de encontro aos princípios aqui discorridos. É nossa premissa também tornar as pessoas conhecedoras para uma melhor tomada de decisão, já que o conhecimento, e não a desconfiança, é a melhor ferramenta para a prevenção quaternária.5
− Justiça: também é nossa premissa, enquanto promotores e defensores da prevenção quaternária, a luta pelo acesso equânime, justo e apropriado aos recursos em saúde, denunciando a mercantilização da saúde e o uso do sistema sanitário para finalidades diversas do benefício das pessoas, reforçando que justiça e acesso nem sempre estão relacionados às “últimas novidades tecnológicas em saúde”.
Nós não cuidamos de órgãos. Nós não promovemos doenças. Nós não superestimamos fatores de risco. Nós cuidamos de pessoas, e pessoas não são números, escores, fatores de risco e nem meros objetos de intervenções. Nós somos cautelosos com resultados surpreendentes de publicações científicas, pois dados podem ser manipulados para diagnosticar sintomas menores ou fatores de risco e assim reduzir os pontos de corte do diagnóstico de uma doença, bem como para criar “pré-doenças”, aumentar o espectro de medicalização e gerar de forma perniciosa lucros para a indústria farmacêutica.6 Nós respeitamos o tempo na ciência e respeitamos a linha do tempo da relação médico-paciente, pois o aspecto relacional na atenção em saúde sempre prevalecerá sobre o aspecto populacional.
Por todo o exposto, apontaremos sempre as indústrias e corporações mercantilistas da saúde com seus “achados extraordinários”, lutaremos contra a criação de estigmas e rótulos nas pessoas, lutaremos contra o excesso diagnóstico e terapêutico, promovendo hábitos saudáveis pautados na ciência médica, livres de conflitos de interesses e de vieses de publicações puramente deterministas ou causais, mas acima de tudo promovendo uma boa comunicação com as pessoas para que elas possam também aprender a se proteger do excesso de intervenções em saúde. É nosso papel advogar pela legitimidade na relação profissional-paciente, reconhecendo as incertezas inerentes à ciência médica em si. Devemos orientar o cuidado de forma não normativa, apoiando-se em evidências isentas e permitindo o feedback do paciente, de modo que ele possa interpretar e ajustar a decisão para si enquanto protagonista do seu cuidado.
Curitiba, novembro de 2013.
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Citas
Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução No. 1931, de 24 de setembro de 2009. Aprova o código de ética médica. Diário Oficial da União. 2009 Sep 24; Seção 1:90-2.
Downie R. Professions and professionalism. J Philos Educ. 1990;24(2):147–159. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1111/j.1467-9752.1990.tb00230.x DOI: https://doi.org/10.1111/j.1467-9752.1990.tb00230.x
Jamoulle M, Roland M. Quaternary prevention. Paper presented at: WICC annual workshop Hong Kong. Hong Kong: Hong Kong Wonca Classification Committee; 1995.
Beauchamp TL, Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. 4ed. New York: Oxford University Press; 1994.
Kuehlein T, Sghedoni D, Visentin G, Gérvas J, Jamoulle M. Quaternary prevention: a task of the general practitioner. Primary Care. 2010 [acesso em 2013 Dec 14];18(18):330-4. Disponível em: http://www.primary-care.ch/docs/primarycare/archiv/fr/2010/2010-18/2010-18-368_ELPS_engl.pdf
Mangin D, Toop L. The Quality and Outcomes Framework: what have you done to yourselves? Br J Gen Pract. 2007 June 1 [acesso em 2013 Dec 14]; 57(539):435-437. PMC2078175. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2078175/pdf/bjpg57-435.pdf
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