Risco cardiovascular, efetividade e mortalidade

Autores

  • Juan Gérvas Equipo CESCA - Madrid

DOI:

https://doi.org/10.5712/rbmfc6(20)437

Resumo

A Lei de Ferro da Epidemiologia (Ley de Hierro de La Epidemiología) diz que todos que nascem, morrem. Por isso, o propósito da Medicina não é evitar a morte por si só, mas evitar as mortes, as doenças e o sofrimento que podem ser medicamente evitáveis.

No final, todos nossos pacientes morrerão – e nós também, obviamente, morreremos. “Os corpos encontram uma forma de morrer”, e se a causa não for por fome ou desidratação, por motivo congênito e infeccioso, por lesões, câncer ou suicídio, temos que esperar que seja por ‘motivo cardiovascular’, doença pulmonar, insuficiência renal ou hepática, demência ou outras doenças degenerativas. Mas temos que morrer por alguma coisa.

Morrer por causa cardiovascular não é desonroso, nem refere-se à atenção clínica imperfeita. O fato de a primeira causa de morte ser a cardiovascular não tem nenhuma relação com os cuidados clínicos e nem deveria assustar.

Entretanto, muitas das mortes por motivo cardiovascular poderiam ser evitadas. Assim, poder-se-ia evitar mortalidade cardiovascular, diminuindo a desigualdade social, por exemplo, com melhor redistribuição da riqueza, melhor educação etc. Os médicos sabem que os fatores adversos psicossociais associados ao fato de pertencer à classe baixa correspondem a 35% do risco atribuído à hipertensão na incidência do infarto do miocárdio (em outra hipótese, pertencer à classe baixa duplica 2,7 tal risco)1.

Também deve-se saber que, contra as mortes cardiovasculares, não há nada como as políticas de saúde pública quanto ao tabagismo (restrições dos lugares onde fumar, aumento do preço do tabaco, campanhas de informação, entre outras).

Na parte clínica, as mortes cardiovasculares evitáveis devem ser vistas em perspectiva, de acordo com o que seja possível conseguir2. Portanto, por 100.000 habitantes ao ano, o tratamento com inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) na insuficiência cardíaca pode evitar 308 mortes; o breve conselho médico contra o tabaco, 120; o tratamento da hipertensão, 71; o uso de aspirina para o infarto do miocárdio, 48; o tratamento anticoagulante na fibrilação auricular, 33; o uso das estatinas para o infarto do miocárdio (prevenção secundária), 14; e o tratamento com estatinas nos pacientes com risco cardiovascular (prevenção primária), 3 mortes. Por isso, o uso das estatinas para prevenir mortes cardiovasculares em pacientes sem doenças coronárias é muito ineficiente.

O risco cardiovascular é calculado seguindo tabelas adequadas. A mais conhecida é a de Framingham. Essa tabela foi obtida com dados de uma população anglo-saxã, que forneceram resultados muito diferentes de outras populações, como as mediterrâneas em que se aplica com melhor validade científica a tabela REGICOR3. Talvez, a tabela de Framingham também seria inapropriada para a população brasileira. Em todo caso, as tabelas de risco cardiovascular são aplicáveis às populações, não aos sujeitos.

As tabelas de risco não são tabelas de decisão. Ou seja, não permitem tomar decisões na consulta com o paciente. Transformam-se em tabelas de decisão por meio da análise do impacto, que não foi feita com as tabelas de risco cardiovascular4.

Portanto, passar da população (tabela de risco) ao paciente na consulta é uma tragédia ‘clínica-estatística’5.

Assim, se os pacientes forem acompanhados por dez anos, a incidência dos infartos do miocárdio será muito menor do que a esperada nos pacientes classificados como de alto risco (e será muito maior do que a prevista nos de ‘baixo risco’)6.

Há um excesso, muito risco cardiovascular na mesma proporção das mortes cardiovasculares7. As tabelas de risco são inúteis e perigosas para se aplicar a um paciente individualmente4,8.

As tabelas de risco cardiovascular deveriam ser retiradas da consulta ao médico para proteger o paciente dos excessos no diagnóstico e no tratamento.

Os médicos podem se confundir ao atribuírem aos fatores de risco um componente causal. Os fatores de risco não são causa, mas sim associações estatísticas. Os fatores de risco não são nem causa, nem são necessários ou suficientes9.

As estatísticas do fator de risco nos pacientes dizem pouco a respeito do problema da mortalidade cardiovascular na população. É mais conveniente observar as estatísticas na perspectiva e não empregá-las para justificar o uso inadequado das estatinas e de outras terapêuticas. Os fatores de risco podem levar à confusão10.

A prevenção primária cardiovascular com estatinas não tem fundamento científico11.

Lamentavelmente, os médicos empregam as estatinas em excesso para a prevenção primária – na qual são inúteis e perigosas – e pouco na prevenção secundária – quando há isquemia coronária, sendo úteis e necessárias12,13.

O mais lógico seria se concentrar na prevenção secundária como clínicos e deixar a prevenção primária cardiovascular para o trabalho conjunto dos médicos gerais/de família com a saúde pública (saúde coletiva), por exemplo, contra o tabagismo, oferecendo o melhor de ambos os mundos para a sociedade.

Downloads

Não há dados estatísticos.

Métricas

Carregando Métricas ...

Biografia do Autor

Juan Gérvas, Equipo CESCA - Madrid

Médico de Família e Comunidade, graduado e doutorado pela “Universidad de Valladolid”, Espanha. Professor em diversas universidades e escolas de saúde pública na Espanha e nos Estados Unidos. Membro do Comitê Internacional de Classificações da WONCA (Organização Mundial de Médicos de Clínica Geral / Família), desde 1986. Coordenador dos “Seminários sobre Inovação na Atenção Primária à Saúde”, desde 2005. Pertence ao Conselho Editorial / Científico de várias revistas internacionais. É atualmente professor nas seguintes instituições: “Escuela Nacional de Sanidad” e “Universidad Autónoma de Madrid”, Madri, Espanha.

Biografia:  http://pt.wikipedia.org/wiki/Juan_Gérvas

Referências

Lang T. Ignoring social factors in clinical decision rules: a contribution to health inequalities? Eur J Public Health.2005; 15(5): 441. http://dx.doi.org/10.1093/eurpub/cki156 DOI: https://doi.org/10.1093/eurpub/cki156

Fleetcroft R, Cookson R. Do the incentive payments in the new NHS contract for primary care reflect likely population health gaines? J Health Serv Res Policy.2006; 11(1): 27-31. http://dx.doi.org/10.1258/135581906775094316 DOI: https://doi.org/10.1258/135581906775094316

Miguel F, García A, Montero MJ. Prevenciónprimaria con estatinas, consensos, ytablas de riesgo. AtenPrimaria. 2005; 36: 31-8. http://dx.doi.org/10.1157/13075929 DOI: https://doi.org/10.1157/13075929

Reilly BM, Evans AT. Translating clinical research into clinical practice. Impact of using prediction rules to make diagnosis. Ann Intern Med. 2006; 144(3): 201-9. DOI: https://doi.org/10.7326/0003-4819-144-3-200602070-00009

Feinstein AR. The problem of cogent subgroups: a clinicostatistical tragedy. J ClinEpidemiol. 1998; 51(4): 297-9. http://dx.doi.org/10.1016/S0895-4356(98)00004-3 DOI: https://doi.org/10.1016/S0895-4356(98)00004-3

Jimeno J, Molist N, Franch J, Serrano V, Serrano L, Gracia R. Variabilidad en la estimación del riesgocoronario en diabetes mellitus tipo 2. AtenPrimaria. 2005; 35(1): 30-6. http://dx.doi.org/10.1157/13071042 DOI: https://doi.org/10.1157/13071042

Betancor León P. [Demasiadoriesgo cardiovascular y enfermedadpocofrecuente]. Med Clin (Barc).2000; 115(1): 738-9. Spanish. DOI: https://doi.org/10.1016/S0025-7753(00)71678-2

Gérvas J, Pérez Fernández M. Dislipemias. En: UsoRacional del Medicamento. Coordinador L.M. García Olmos. Madrid: Ars XXI; 2007. [curso a distancia] http://www.equipocesca.org/uso-apropiado-de-recursos/dislipemias/

Miguel García F. [Factores de riesgo: una nada inocenteambigüedad en el corazón de la medicina actual]. AtenPrimaria. 1998; 22(9): 585-95. Spanish.

Starfield B, Hyde J, Gérvas J, Heath I. The concept of prevention: a good idea gone astray? J Epidemiol Community Health.2008; 62(7): 580-3. http://dx.doi.org/10.1136/jech.2007.071027 DOI: https://doi.org/10.1136/jech.2007.071027

¿Tienenalgúnpapellasestatinas en prevenciónprimaria?.Actualización de la evidencia.Therapeutics Initiative Letter. [Internet]. 2010; 77. [cited 2011 Dec 5]. Available from: http://www.ti.ubc.ca/es/newsletter/%C2%BFtienen-alg%C3%BAn-papel-las-estatinas-en-prevenci%C3%B3n-primaria-actualizaci%C3%B3n-de-la-evidencia.

MaiquesGalán A, Villar Alvarez F, Llor Vila C, Torcal Laguna J. El riesgocoronario en España y el tratamiento con fármacoshipolipemiantes. AtenPrimaria. 2003; 32(7): 420-2. Spanish. DOI: https://doi.org/10.1016/S0212-6567(03)70760-4

Ray KK, Seshasai SR, Erqous S, Sever P, Jukema JW, Ford I, et al. Statinsandall-causes mortality in high riskprimaryprevention. ArchIntern Med. 2010; 170(12): 1024-31. http://dx.doi.org/10.1001/archinternmed.2010.182 DOI: https://doi.org/10.1001/archinternmed.2010.182

Publicado

2011-11-17

Como Citar

1.
Gérvas J. Risco cardiovascular, efetividade e mortalidade. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 17º de novembro de 2011 [citado 28º de março de 2024];6(20):165-70. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/437

Edição

Seção

Editorial

Plaudit